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  • Foto do escritorGiovana Pereti

A gótica, a bruxa e o filho transformista


Essa semana meu irmão e minha cunhada vieram nos visitar, e o papo que começou com uma troca de ideias sobre perspectivas profissionais e de mercado, se desenrolou em novas percepções a respeito da nossa família, machismo, hierarquia, etc.

Em certo ponto da conversa, meio debochado, ele recordou a minha fase gótica, o que me surpreendeu imediatamente porque eu nunca tive uma fase gótica. Cheguei a me interessar pelo tema por volta dos 16 anos, quando comecei a achar muito elegantes os looks monocromáticos em preto, mas a vida, que sempre me trouxe referências imediatas para as minhas inspirações e curiosidades, colocou no meu caminho como professor de inglês um rapaz que se identificava como gótico e que se sentiu a vontade para compartilhar com nossa turma algumas de suas experiências. Uma delas foi a de que ele e seus amigos costumavam ir ao cemitério de madrugada para beber vinho e conversar, o que me deixou apavoradíssima para nunca mais flertar com esse movimento.


Mas voltando a essa recordação do meu irmão, me intrigou a origem dessa memória, a qual questionei com indignação. Como poderia ter sido percebida gótica alguém tão colorida?


- Ué você não lembra que teve uma fase na qual você só se vestia de preto e que o pai uma vez te fez queimar aquela capa que você usava?


E foi do que essa pergunta revelou que se trata o texto de hoje: como duas pessoas conseguem ter lembranças completamente diferentes e construir cenários e comportamentos alheios a partir de um mesmo momento.


É importante esclarecer que entre meu irmão e eu há uma diferença de 8 anos, e que essa lembrança que ele trouxe à mesa, deriva de um episódio ocorrido quando ele tinha 4 anos e eu 12, ou seja, 4 anos antes de eu ter estudado inglês naquela escola com o professor gótico, mas por coincidência, quando eu já estudava o idioma em outra escola, onde, modéstia à parte, eu arrasava no Halloween.

Na InCompany, eu participei de 3 comemorações do Dia das Bruxas:

  1. na primeira, aos 10 anos, me fantasiei como Seiya, um personagem dos Cavaleiros do Zodíaco que tinha um par de ombreiras maravilhoso, que eu mesma confeccionei com cartolina e que me rendeu elogios tímidos;

  2. na segunda, aos 11 anos, fiz uma maquete que combinava um navio pirata feito de lego com um cenário de paper craft, também confeccionado por mim, que me rendeu uma caixa de bombons como prêmio pelo melhor trabalho de Halloween;

  3. na terceira, aos 12 anos, minha fantasia de bruxA, me rendeu um dos maiores… (suspiro) MICOS DE TO-DA MI-NHA VI-DA (mas ainda estamos contando, então né…)

Eu sou uma dessas pessoas que quando fica muito animada com um novo projeto, começa a ter ideias antes que a professora termine de explicar o programa. E a programação das comemorações de Halloween daquele ano seria de não apenas um, mas de dois dias - e ia ter uma excursão temática!

Num dia nós teríamos a clássica festa à fantasia, na qual todos os alunos poderiam se fantasiar e as crianças passariam nas salas dos maiores pedindo "trick or treat”, e noutro dia haveria uma excursão para um restaurante famoso, franquia americana, onde só se falaria inglês pra gente praticar.


Juntei dinheiro do lanche por quase um mês, comprei uns 2 metros de tecido preto na loja perto de casa, um chapéu de bruxa e um jogo de unhas postiças vermelhas de 5 centímetros na loja de R$ 1,99, também ali do lado. Só pedi pra minha mãe costurar a capa na máquina porque isso eu ainda não sabia fazer.


Chegou o dia da excursão! Eu me montei toda de bruxa, minha mãe e minha irmã foram me levar na escola de inglês e, quando chegamos lá, atrasadas, o ônibus estava na frente da escola, já com todos os alunos dentro, e na porta estavam só a diretora e uma professora me esperando para sairmos. LEGAL, NÉ? Então, não.


Eu fiquei tão animada com o Halloween, que me confundi toda e tinha CER-TE-ZA que a excusão seria uma festa à fantasia. Ué, mas a festa a fantasia e a excursão não seriam em dias diferentes? Pois é, eu era A ÚNICA pessoa fantasiada na excursão. E na hora, sem saber o que fazer, desci do carro e fui até o ônibus.


- Que bruxo legal! - disse a diretora da escola, que sempre me fez sentir muito querida. Eu senti sinceridade nela.


E eu subi no ônibus. E atravessei o ônibus, porque minha turma estava sentada no fundão. Gente, cena de filme. Sabe quando TO-DO MUN-DO fica olhando pra sua cara? Então, assim.

Daí você me pergunta: ”Mas Giovana, por que você não tirou a capa, as unhas e o chapéu e foi com a roupa que estava usando por baixo da fantasia?”, e eu lhe respondo: "Porque a roupa embaixo da fantasia era roupa de baixo". A capa era fechada então era como uma saia preta do pescoço até os pés, com furos para passar as mãos. As unhas e o chapéu, claro, eu deixei no carro, mas a capa - ah, a capa - não tinha como deixá-la mais discreta.


Enfim, foi um passeio muito constrangedor. Uma amiga da minha sala me acompanhou o tempo todo e foi uma fofa, ela dizia:


- Relaxa, a professora falou que podia vir de fantasia.

Mas eu estava preocupada mesmo era com chegar em casa.

Eu nem me lembro como foi o percurso da porta da escola até em casa. Se foi minha mãe quem foi me buscar na escola no final da tarde, ou se foi o meu pai. Mas me lembro que quando cheguei em casa, o festival de humilhação fez o constrangimento do passeio parecer uma quick-massage no corredor do shopping.


Depois de dizer que eu era uma bixa, um veado, uma vergonha, meu pai me obrigou a tirar a fantasia e ficar olhando enquanto ele a queimava no meio do quintal. Mais tarde, ainda aos gritos, ele me avisou, e à todos da família, que à partir daquele dia, eu seria o empregado da casa. Depois que todos jantaram, eu lavei a louça e limpei a cozinha e então ele mandou que eu fosse dormir. Lá nós sempre dormíamos tarde, mas naquele dia, às 22h todas as luzes estavam apagadas. Até as 22h30m.


Eu ainda não havia dormido, quando ele entrou no quarto onde meu irmão e eu dormíamos, me tirou da cama e disse:

- Quer saber, eu não vou sustentar um filho bixa dentro de casa. Levanta arruma as suas coisas numa mala que eu vou levar você pra um colégio interno.

Eu arrumei a mala e desci as escadas acompanhando ele. Lá embaixo, quando ele pegou as chaves do carro, minha irmã desceu correndo, entrou na frente do meu pai e pediu a ele que parasse. Ela apelou ao bom-senso dele, dizendo que ele se arrependeria se fizesse aquilo. Ele relutou um pouco, mas logo impôs sua condição para que eu pudesse permanecer morando em sua casa.

- Eu só perdoo ele, se ele me pedir perdão de joelhos.


E foi assim que aos 12 anos, eu fui autorizada a permanecer morando na casa dos meus pais.


Pode parecer lavação de roupa suja em público ou choramingo de travesti de classe média que deveria agradecer por não ter sido expulsa de casa, mas na verdade eu só queria compartilhar uma vivência pessoal, uma experiência difícil que enfrentei, e tentei escrever um texto leve.


Mas escrevendo eu percebi que eu não consigo falar sobre isso de um jeito bonito. Então já deixo aqui meu pedido de desculpas se você leitore se decepcionou com esse texto. Acho que eu me decepcionei um pouco também.

Minha intenção era tratar de uma maneira engraçada sobre uma vivência dolorosa para, talvez, ressignificá-la. Mas foi mais difícil do que pensei que seria, porque eu percebi que hoje eu sou uma mulher de 35 anos escrevendo sobre uma criança de 12 anos que passou por uma situação de abuso psicológico por parte de um adulto que deveria protegê-la. E percebi que estou escrevendo também sobre uma criança de 4 anos que presenciou essa violência, e que dormia no mesmo quarto que foi invadido aos berros no meio da noite, de onde viu o irmão ser arrancado da cama para ser levado embora.

E isso ficou registrado na minha memória e irá me acompanhar durante toda minha vida, e infelizmente, essa semana eu tive que contar essa história para o meu irmão, que hoje aos 28 anos descobriu que eu nunca tive uma fase gótica.



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