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  • Foto do escritorGiovana Pereti

Alerta de gatilho: Luto

Atualizado: 26 de ago. de 2021



Olá queride. Hoje vou fugir um pouco do meu tema aqui no blog para falar de um sentimento que ocupou meu coração durante muitos momentos nos últimos meses. E quero deixar bem claro desde o primeiro parágrafo que não estou pedindo licença para fazê-lo, estou avisando. E já estou fazendo. E enquanto eu faço, já está acontecendo. E quando você ler esse texto é porque eu já fiz, e já aconteceu. E a vida não é assim mesmo? Quando a gente percebe, já foi, já aconteceu, e não há nada mais que a gente possa fazer senão seguir em frente.


Você já deve ter percebido, mas o mundo lá fora está se acabando: sonhos estão se desfazendo, casamentos estão acabando, trabalhos, profissões, tudo. Tudo. Tem até gente morrendo. E tem gente tripudiando disso, fazendo piada, deboche, pirraça, sem qualquer pudor pra demonstrar seu caráter, seu descaso, suas intenções.


E nem estou falando desse vírus que, por ironia, está fazendo com a gente exatamente o que a gente tá fazendo com a Terra já tem tempo. Ou você acha que na hora de derrubar uma floresta pra fazer pasto, eles escolhem só as árvores mais velhas, doentes, podres? Ou você acha que no seu prato do churrasco de domingo, a carne veio de uma vaca escolhida por ser mais branca, ou mais marrom, ou mais preta? Não. Essa corda no nosso pescoço está apertando aleatoriamente, não vê classe, não vê cor, não vê cultura, nacionalidade, nada. Nem idade, a despeito das estatísticas que a cada dia se confundem mais com notícias antigas de um mundo de um ano atrás que, esse sim, já se acabou.


Estou falando da vida que continua acontecendo independentemente de você estar trabalhando ou não, do seu filho estar estudando ou não, do seu negócio estar funcionando ou não, de haver ou não comida no seu prato. Estou falando que ainda tem gente encontrando motivo pra celebrar. Tem gente descobrindo novas aptidões, tem gente estudando, tem gente sonhando, tem gente casando, tem gente nascendo.


Particularmente para mim, a vida continuou acontecendo como se eu estivesse tentando me segurar sentada num “La Bamba” enferrujado em um parque de diversões falido. Sabe aquele brinquedo que parece um prato gigante onde as pessoas se sentam nas bordas e tentam se segurar em barras de aço para não escorregarem enquanto o controlador faz o brinquedo chacoalhar ao som de uma música cafona? Mas no meu caso, o controlador saiu pra dar uma volta e deixou o brinquedo funcionando em um ciclo intermitente.


Eu me considero uma pessoa otimista e tenho uma habilidade particular para suportar todo tipo de desconforto construída a sangue, suor e lágrimas. Isso me ajudou bastante nesses tempos de incerteza, a encontrar realização e até ver alguma alegria e beleza, como resultado de um trabalho obstinado que venho desenvolvendo há anos.


Em contrapartida, passei pelo desespero de ter as pessoas que eu mais amo internadas em decorrência dessa enfermidade assustadora, perdi um tio, vi amigos chorando as perdas de seus entes queridos. Perdi minha gata, que foi minha companheira por quase 20 anos. E perdi uma das mulheres que mais influenciaram minha formação moral. Porque a vida é assim mesmo, ela acontece mesmo que a gente tenha que ficar em casa. E às vezes, ela deixa a gente atônito e a gente para. Eu tentei algumas vezes falar comigo mesma sobre isso e ainda não havia conseguido, mas vou falar agora com você, e já aviso de antemão que esse texto vai estar cheio de gatilhos.


A Francisca começou a trabalhar com a nossa família quando eu tinha 7 anos. Meus pais trabalhavam fora, minha irmã mais velha estudava no período da manhã e eu estudava no período da tarde. Ela cuidava de nós, da nossa comida e da nossa casa. Era uma paraibana pequena, mignon, mas tinha uma personalidade enorme. Separada de um ex-marido agressivo, era mãe de quatro filhos, três ainda vivos, dos quais dois viviam com ela e tinham idades próximas à minha. Era uma escorpiana durona, forjada por uma vida muito desafiadora. Nossos temperamentos eram bastante parecidos, o que, invariavelmente, resultava em muita treta. Eu era uma criança levada, era desaforada, mas não aceitava desaforo, e ela também. E mesmo em meio a tanta confusão, a gente se amava muito.

Eu me lembro até hoje de um tênis tipo keds marrom que ela me deu de presente de aniversário. Esse momento está registrado na minha memória com uma lente meio amarelada, como um vídeo caseiro dos anos 80. Quando meus pais precisavam sair e voltar tarde, ela também ficava com a gente em casa e trazia os filhos, e a gente brincava junto. As vezes ela os trazia durante o dia.


Às vezes, a Fran pedia as contas e ia embora. Eu acho que ela se enchia da gente, ou de mim e do trabalho que eu dava. Chegou a ficar uns 4 anos sem trabalhar com a gente, mas virava e mexia, aparecia de tarde pra tomar um café com a minha mãe que já estava aposentada. Depois voltava a trabalhar com a gente mais uma vez.


Minha adolescência foi um período especialmente difícil para toda minha família. Para além dos desafios comuns dessa idade acerca da construção da minha identidade, eu ainda precisava lidar com a minha não conformidade em relação à minha identidade de gênero, sem qualquer referencial de pessoa trans. Atravessando uma vivência pessoal difícil combinada a uma personalidade forte e sob os efeitos do tratamento de transição hormonal, eu não fui gentil com a Fran.


Ela passou um período longo trabalhando em outras casas, e quando finalmente retornou para nossa família, eu já havia concluído a transição e já havia adequado minha imagem social à minha personalidade. Me lembro que às vezes, ela permanecia longos momentos me olhando admirada, como se tentando entender como aquele molequinho que ela ajudou a criar havia se transformado naquela mulher.


Certa vez, eu estava ao telefone com meu primeiro namorado, ao qual eu havia aberto minha condição ainda muito recentemente, e depois de passar um tempo parada olhando pra mim, ela percebeu nossa gata dormindo sobre minha blusa de moletom que estava sobre o sofá ao meu lado. Ela então pegou minha gata e a arremessou ao chão, e depois deu uma sacudida no agasalho, o dobrou e o colocou sobre o encosto do sofá.


Francisca, não faça isso com a minha gata! - eu gritei.

Eu faço porque não é você quem lava as suas roupas!

Olha Francisca, você sai de perto de mim antes que eu comece a falar coisas que você não vai gostar de ouvir.

Fala, pode falar. - ela replicou de forma debochada, como se ameaçasse dizer algo comprometedor a meu respeito enquanto eu estava ao telefone. Naquele momento, só os meus pais sabiam que eu já havia contado minha história ao meu namorado.


Eu desliguei o telefone e a treta começou. Uma gritou com a outra e ao final, estavam as duas cansadas e magoadas. Ela ficou mais alguns meses conosco e, mais uma vez nos deixou. Acredito que nossas interações raivosas contribuíram para sua decisão.


Já adulta, depois de muitas idas e vindas da Fran, eu não conseguia entender porque minha mãe ainda aceitava que ela voltasse a trabalhar em casa. Pra quê, se ela nos deixaria novamente tão logo se cansasse de nós. Ou de mim. Dessa vez, já com quase trinta anos, a Fran voltou pra casa lidando com um novo desafio muito pessoal: sua filha estava namorando uma mulher. Um dia ela chegou mais cedo em sua casa e encontrou a filha durante um momento íntimo com a namorada. Ela confidenciou à minha mãe que perdeu o controle, colocou a moça pra fora e agrediu a filha.


Nos meses que seguiram, acompanhei sua dor e indignação com a “decisão” da filha em seguir esse "estilo de vida”. O seu processo de aceitação levou anos. Sua filha se mudou para uma cidade no interior e permaneceu distante durante um tempo. Durante esse período eu me afastei pouco a pouco da Fran. Principalmente ao descobrir que ela contou a minha história para uma pessoa que havia estudado na mesma faculdade que eu, a quem eu não conhecia.


Eu nunca fui uma pessoa discreta. Falo alto, gesticulo muito, sou alta e cabeluda. Sempre me interessei por moda e gostava de utilizá-la como ferramenta para expressar minha individualidade e minha personalidade extravagante. Mas durante a maior parte da minha vida eu evitei falar abertamente sobre minha experiência de vida enquanto mulher trans. Em parte por medo da discriminação e da violência, em parte por vergonha, por ter aprendido que era errado, feio, sujo, nojento, ser uma pessoa trans. A verdade é que eu não sabia o que dizer, eu não entendia o que era ser diferente porque eu não sabia o que era ser igual. Eu ainda estava aprendendo a ser eu, descobrindo o que eu podia fazer e até onde eu poderia chegar indo contra tudo que aprendi do meio em que me desenvolvi. Mas principalmente, porque eu não queria. Eu escolhia a dedo as pessoas com as quais eu compartilhava minha história e prezava muito pelo pouco de liberdade que tinha, já que não podia evitar que meu nome de registro estivesse exposto na lista de presença que eu precisava assinar todos os dias em frente aos outros alunos.


E depois de mais de 10 anos, pessoas que não me conheciam ainda especulavam sobre minha história, e eu me senti traída pela Francisca quando ela admitiu ter revelado detalhes da minha vida pregressa para uma delas. Aos poucos, e alternando entre silêncios e insultos, nós fomos nos distanciando até o dia em que deixei a casa dos meus pais. E dali em diante eu evitava visitá-los nos dias em que ela estivesse lá.


Depois de um longo período afastadas, voltamos a nos ver e conversar, mantendo um distanciamento saudável. Nessa época ela descobriu um câncer no estômago e iniciou um tratamento que envolveu uma cirurgia e algumas sessões de quimioterapia oral. Ela se recuperou, retomou sua rotina e, aos poucos, foi voltando a se alimentar normalmente. E infelizmente, voltou a fumar.


Durante dois anos, nossa reaproximação foi cautelosa, mas tivemos momentos de interação verdadeira. Numa conversa ela se abriu e admitiu ainda ter dificuldades para lidar com a orientação sexual da filha que havia voltado a morar com ela. Eu lembrei a ela das dificuldades que nossa família enfrentou durante minha infância e adolescência, e sobre como a aceitação e o amor foram importantes para superarmos nossos preconceitos.


A Fran nos deixou na última semana de abril desse ano. Ela vinha se sentindo cansada e decidiu parar de trabalhar para ajudar a filha a empreender fazendo bolos caseiros. Nós a acompanhávamos à distância, por telefone, considerando as restrições impostas pelo covid.


A notícia do falecimento dela mexeu com todos nós. Meus pais decidiram ir ao velório, e eu os acompanhei. Chegando lá, foi inevitável quebrar as regras de restrição da pandemia e, usando máscaras, todos nos abraçamos. Na sala o número de pessoas autorizadas a permanecer era restrito, por isso primeiro encontrei o filho dela do lado de fora e depois a filha lá dentro. Ao abraçá-los, ambos me disseram exatamente a mesma frase, com as mesmas palavras:

“Ela tinha muito amor por todos vocês”.


Isso ecoou no meu coração e ainda ecoa. Do nosso jeito, aos trancos e barrancos, nós nos amamos. Eu sabia disso, mas não percebia isso. E no dia seguinte ao funeral dela, tive uma conversa com minha mãe que me fez entender porque ela sempre aceitava que a Fran voltasse pra casa mesmo depois de ir embora tantas vezes. Porque para minha mãe, ela era muito mais que apenas alguém que trabalhava com ela. Ela era a pessoa que a ajudou a criar os seus filhos e que, agora na velhice, se tornou uma companheira, uma amiga.



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